A língua dos sonhos


Ele morreu há três anos mas eu sei que é nele que pensas ainda todos os dias quando te vejo esvaziada de todas as coisas.
Há noites em que chamas baixinho o nome dele. Sem dares por isso, julgo eu. Não farias essa maldade. Eu não ouso mexer-me ou sequer respirar, esperando que não acordes e que essa saudade que te habita enquanto dormes não te dê a coragem para ires embora.
Essa saudade. Essa saudade é o que não me deixa preencher-te, digo-te às vezes quando o brilho dos teus olhos cega o meu orgulho quando dizes o nome dele. Não ouso gritar-te que ele está morto e que eu estou aqui.
A saudade é uma tatuagem na alma. Só nos livramos dela perdendo um pedaço de nós, é o que respondes.
E eu odeio-o mais ainda por estar morto e viver dentro de ti e por todos esses livros que te deu e que estão na estante da sala e que te levam para dentro deles. Para dentro dele. E muitas vezes caminho furioso na tua direcção, pronto a arrancar de ti esse pedaço e dilacerá-lo entre os dedos. Mas depois há este amor que me trava e penso que podes ao perder um pedaço de ti, perder o pedacinho ínfimo em que sentes a pena que te faz ficar comigo e então chego perto de ti já sem fúria e sorrio pensando que a pena pode ser melhor que nada.
Por isso durmo quieto sustendo a respiração para não te acordar enquanto sonhas com ele e eu penso que é por isso que não falamos mais, que não falámos nunca. Eu vivo acordado, tu começas a viver quando adormeces.
E os que vivem em sonhos falam uma língua que quem perdeu a capacidade de sonhar já não entende.


Ana

itálico de Mia Couto

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