Cartas de Outono
Enquanto dormes constrói-me um
rosto de luz, no limbo do teu sonho. Toca-o e acorda-me. Caminha comigo,
peço-te, na inquietação daquele rosto, e nesta alegria suspensa na solidão.
Há séculos que te esperava para
fugirmos. E não sabia que a fuga era possível pelas estradas de giestas em
direcção ao mar. Dorme e consente que o meu coração escute o teu. Quero arder
contigo, nesta eternidade feita de pontes atravessadas, kms nocturnos e
segundos de asfaltos.
Para trás ficou a cidade. E tu
sabes que a cidade só existe no apanhar um táxi. E perdermo-nos até amanhã –
sem querer podermos dizer adeus, porque não se pode dizer adeus à paixão.
Amanhã ou enquanto dormes – agora
mesmo – vou pensar em ti. Intensamente: até que as horas me doam a pele, e o
movimento dos dias passe como aves que perdem o sentido do voo – até que tudo o
que me rodeia tome a forma do teu corpo.E em mim circules – quando estendo a
mão por dentro da noite e te acordo, no fogo dos meus olhos.
No fim do sono existe um vulcão.
De repente a manhã. A bruma. Um
pássaro. As coisas que me rodeiam com os seus segredos – mas as coisas, sabe-se
lá, só existem porque as palavras dizem que existem. E os segredos das coisas
estão em mim – e não nas coisas.
Quando subo pela haste da manhã,
encontro uma cidade de cristal. Trouxeste-ma tu, na dádiva do corpo. E se
conseguisse tocar-te com a respiração, ouvia-te dizer:
- É na desolação dos dias que o
meu olhar segrega o mel com que te alimentas.
Penso no que te vou deixar: nomes
de flores e de estrelas para refazeres os jardins e as constelações, e o peso
etéreo da minha morte – para continuares a celebrar a vida.
Insónia. Noite fria, repleta de
medos. Noite sem fim. Nada. Levanto-me e abro a janela. Respiro fundo. Um fio
de sol embate na garrafa de gin abandonada ao lado da cama. Ponho os óculos e o
dia torna-se nítido, focado, limpo, e cheira a violetas…
Às vezes, tenho a impressão de
ter perdido a exactidão dos gestos e das palavras. Estive tempo a mais sozinho
– reaprendo, com dificuldade, a ser cúmplice, amigo, amante.
Não me desagrada a ideia de viver
num farol abandonado. Não me desagrada a ideia que a luz se apague. Não me
desagrada pensar que posso perder a lucidez. Por isso bebo.
Beber ajuda a cicatrizar o olhar
ferido da noite. Isola-nos do mundo, acende-nos os gestos, antes de nos
perdermos de bar em bar.
Amantes e embriagados. Destinados
à chuva das ruas, às cidades que ardem junto ao mar, ao silêncio azul das
manhãs. - Aí vem o 28 dos Prazeres… e um táxi. - Não me abandones, fica… E o
vinte e oito passa, e passa o táxi, enquanto olhamos A Dança de Matisse na capa
dum livro.
Vamos pela manhã que se ergue,
suja, enevoada – onde as palavras que digo se confundem com o teu sorriso. E os
semáforos mudam de cor, inutilmente.
Rua da Rosa, Travessa da Espera,
Calçada do Combro. Silêncio sobre silêncio. A vida suspensa no estremecer de um
abraço.
- Até logo. Se te lembrares de
mim, telefona.
Fecho por fim, as pálpebras. O
teu rosto sobrepõe-se à imagem do meu rosto. A tua mão esconde-se na imagem da
minha mão. E no espelho já não há imagens, nem corpos, nem mar…
Logo à noite, outra vez o olhar,
os corpos, a chuva, o sono, a fuga, a alma, o dia, dos dias… o regresso. O
telefone, e Lisboa a sussurrar no vento da tua ausência.
A vida é sacana. Sobretudo não é
aquilo que nos disseram que era. Por vezes, quando nos sentimos a morrer, vemos
como é disparatado saber que tudo vai acabar. Precisamente quando tínhamos
descoberto alguém com quem podíamos falar. Passamos a vida numa espécie de
silencio, numa mudez terrível que se quebra, ainda que raramente, diante de
certas coisas que nos contaram e nos deslumbraram.
Mas é tarde. As coisas que nos deslumbraram
eram efémeras, breves. E não se pode voltar atrás.
Tenho um amigo que disse:
- Sabes, a verdade nunca acaba.
Mas o que será a verdade quando
estivermos mortos?
Penso no lugar secreto do Caos e
da Ordem que se erguem, subitamente, diante daquele que ama, e escreve.
Um dia, disseste:
- A paixão serve para te mostrar
os fogos da noite.
Acreditei no que me dizias, mas
já não consigo dormir, só morrer. O teu sorriso colou-se-me à boca.
Passo os dias a espiar as
paisagens diluídas na memória que tenho de ti. Atravesso continentes que se
transformam em minúsculas dores, pequenos territórios que cabem no fundo duma
algibeira, ou em meia dúzia de palavras.
Lembro-me que numa viagem de
comboio podemos encontrar gente cúmplice do silêncio – mas dificilmente um
amigo de olhos cor-de amêndoa que te diga:
- O teu olhar é belo.
Espantado, respondes:
- O meu olhar só é belo porque se
deixou aprisionar pelo teu. Nesse lugar profundo onde nos cruzamos e o mundo
faz sentido. E quando a distância nos separar, e Lisboa for apenas uma
impressão vaga de mal-estar, uma parte de mim pertencer-te-á.
Mentir é necessário. É a melhor
maneira de esconder o que há de doloroso na verdade.
Repara, através dos meus olhos
descobrirás como é a grande tristeza do mundo. Apenas isso. E, quando aqui não
estiveres, espetarei todas as facas que encontrar nas paredes febris da noite.
Talvez sangre dos pulsos. Talvez
te escreva. Talvez…
Olho atentamente as fissuras do
tecto. Desloco-me através delas, alcanço a noite. O teu rosto, de quando em
quando, pousa na minha solidão. Há vinte anos que a vida se apagou nas linhas
da mão, e os jardins da cidade permaneceram, todo esse tempo, envoltos na
bruma. O Tejo não deixou o tempo correr.
Mas um dia, talvez agora, abrirei
as mãos no escuro do quarto, e o teu rosto incendiar-se-á.
As mãos queimadas, memória da tua
passagem.
Por isso te escrevo, com esta luz
encostada à boca. E espalho a cinza destas palavras pelo escuro da noite.
Perder-te, levar-me-ia ao zumbido ensanguentado duma bala. A paixão, a nossa,
foi construída com a lentidão das obras-primas. E nela não há equívocos, nem
erros. O teu rosto é perfeito e intenso – brilha, assim que o nomeio ou toco:
sinal de vida, estremecer do mundo na melancolia das mãos.
Assim te raptei uma noite – com
ansiedade e susto. E assim te mantenho vivo, e amo, dentro e fora do poema.
Hoje, tudo me parece novo e antigo, em simultâneo, como se já soubesse que
havias de chegar e mudar-me a vida, o rumo dela, e depois partir.
Lá fora chove. Chove sem parar. E
Lisboa parece encolher-se dentro do teu sono.
Al Berto
in Dispersos
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