Carta de amor

J. J. Silva Garcia, cidadão quase anónimo. Encontrou Manuela, então aluna de História e hoje professora, numa viagem de comboio e depois na biblioteca da cidade. Saíram juntos pela primeira vez num primeiro de Abril. Casaram-se em Maio, não no que se seguiu, mas alguns anos depois. Noutros meses de Maio mais adiante, nasceram a Catarina e a Sara. Arquitecto, correndo riscos por causa da tentação do traço e da tentação pelas palavras, escreve carta à mulher no dia do vigésimo quinto aniversário de vida em comum.



M.

Num dia que guardarei na colecção dos que são únicos, e que repete, vinte e cinco anos depois, o dia mais do que único, quis fazer-te uma espécie de poema, propositadamente incompleto... Poesia, serpenteando por entre linhas infinitas, carregando em cada linha uma orquídea branca... E, em cada linha por terminar, um sonho que se inicia... em cada letra de cada sonho um beijo... e em cada beijo o tempo que foi e, sobretudo, o tempo que quero que seja contigo, de novo, para sempre... No tempo que flui, na emoção de nos vermos para além do contorno dos nossos corpos dissolvidos num único oceano, e da alma que cresceu por juntar a energia de todos os astros que havia em nós.
Quis fazer um poema propositadamente incompleto... Trazer aqui outra essência, a da transformação do Amor, na esperança da Catarina e nas quimeras da Sara... Por causa de vinte e cinco anos, quis fazer uma espécie de poema propositadamente incompleto, cantar o amor desatado pelo primeiro orvalho da manhã... Quis entender o sentido do mar na voz infinita dos búzios... desenhar incompleto essa espécie de poema apenas por estratégia... para ter tempo de ouvir a música que nasce do teu peito... em todas as horas do mundo, com a curva de um carinho, onde a solidão se torne uma palavra impossível...
Por isso, não me serve um poema entre parênteses... Os versos poderão ter vírgulas e pontos de exclamação, e arriscar reticências rumo ao futuro... Quero poesia em perpétuo movimento, com a completa certeza de que, sem ti, a vida teria sido e seria uma imensa escuridão maior que a noite, para além da noite e sem sentido...

J.

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