carta a Sandra


Sandra. Hoje a obsessão foi mais forte. Escrever-te. A nossa história que contei parecia-me intocável. Princípio e fim de nós nela, a tua morte selara-a para sempre. E todavia é nessa eternidade que a tua memória me perturba e a imagem terna do teu encantamento. Deves talvez lembrar-te de que nunca me escreveste. Mas eu escrevi-te algumas vezes quando vinha a férias e a emoção era demais. E um dia perguntei-te se tinhas guardado essas cartas. Tu olhaste-me com o teu sorriso breve e repreensivo. Rasguei-as, naturalmente, disseste, e porque havia de guardá-las? Gostava de as reler, de as ter, disse eu. Para recuperar o que fui nelas e o que houve nelas de ti. Que tolice, disseste ainda, a adolescência passou.
E, no entanto, nesta casa vazia e enorme, no silêncio da Terra que me aturde, é essa adolescência que regressa, e com ela a tua fala séria e  doce. Escrever-te. Possivelmente irei fazê-lo mais vezes até ver se no escrever se me esgota a tua fascinação. Tenho algumas fotografias tuas, mas o que procuro nelas não está lá. E é decerto por isso que raramente volto a vê-las. Porque tu nunca foste real para eu te poder amar. E é essa irrealidade amada que estremece na minha comoção e no êxtase leve de te imaginar. Podia no entanto lembrar-te em tanta situação da vida que nos coube. No dia em que a Xana nasceu. Numa praia iluminada do Sul. na noite em que conheci a ternura do teu corpo. Na tarde em que me disseste sim, podemos experimentar. Nos intervalos da nossa monotonia que também houve. No difícil da vida para ela se cumprir toda. Na tua morte. Escrever-te. Escrever-te. Talvez te  conte do muito que não contei e tu me não digas que tolice. Mas por sobre tudo o que poderia lembrar, há uma imagem obsessiva de ti e é a que sempre se me levanta ao incerto da evocação. Na realidade nunca te esqueço no dia a dia que te esquece. Mas ficas um pouco ao lado, à espera de que eu volte de novo a olhar-te. É uma imagem fluída e intensa, essa que se me ergue sempre, e eu penso que possivelmente é a de quando te vi pela primeira vez. Mesmo que não fosse a primeira e que estivesse então distraído do meu amor que passava em ti. Eu estava sentado com outros colegas num murete do jardim da Faculdade.. E a certa altura tu irrompeste de algures, do impossível, talvez afinal da tua casa que eu soube mais tarde que ficava ao pé. E o que se fixou na lembrança e imediatamente me aparece ao vaguear da evocação foi o movimento em filigrana da tua anca subtil, o aéreo do teu passar no teu equilíbrio frágil, a tua face doce e triste. E então imobilizo-te antes de a aragem te levar, para te ver bem. E assim te fixo a coxa fina, suavemente modelada pelo teu vestido, o pé à frente, firme e delicado. Verdadeiramente não sei bem o que o tempo me filtrou. É Outono, está sol, e há ainda no ar uma memória de Verão. É assim possível que tragas um vestido leve, provavelmente com o teu casaco solto de xadrez que te descia um pouco abaixo do joelho. Mas não e dá jeito lembrar-te assim.  Talvez porque o teu vestuário flutuante não deixe traçar a modulação do teu corpo. E eu sinto-a ainda no lineamento do teu passar. Trarás por isso talvez um casaco justo, escuro e comprido, para existir sob ele o teu ondeado gentil. Mas quero dizer-te que ao lembrar-te não és só tu a existires. Há a cidade solar que te envolve e eu vejo sem a ver quando vens à minha lembrança. E mais alto, como um esplendor, o eco de uma balada. E tudo isso és tu, minha querida. A tua intocável beleza, e o espaço e a melodia em que ela se inscreve.

Em tanto lugar eu poderia lembrar-te. Mas volto sempre ao começo da irradiação de ti. Há assim um pacto obscuro entre tudo o que foste até à morte e a eternidade da tua juventude. Porque é lá que tu moras, no incorruptível, no intocável do teu ser, na perfeição que um deus achou enfim perfeita quando te entregou à vida para existires por ti. Mas como seres jovem e eu conhecer-te, fora da cidade do Sol? da colina desdobrada à sua luz? do espaço de um acorde de guitarra a toda a volta no ar? É bom poder dizer-te quanto te lembro aí. E te quero. É bom não poderes dizer-me que tolice. Ou fitares-me apenas com o teu olhar severo e vivacíssimo. Ou repetires-me que eu não cresci desde a adolescência e isso ser o bom sabor de uma oculta verdade em mim, para não ser um adulto regrado e quotidiano. É bom poder dizer-te tudo e tu agora não poderes dizer nada, para esse meu tudo ser tudo. Às vezes eu pensava que tu não fazias ideia do incrível e maravilhoso de ti. Estavas dentro e o teu esplendor estava fora. Nesta casa deserta, como é bom estares aqui comigo. E falar-te. E escrever-te. E ver-te.  Voltarei ainda a amar-te? Voltará o impossível de ti quando eu o evocar? Escrever-te. E dizer-te tudo o que nunca deixaste que te dissesse e devia ser a insensatez que tu dizias. É Inverno, há já neve na serra, mas o céu está cheio de azul. Devias gostar de ver, mesmo sendo da cidade, onde o céu não existe. Devias gostar de ver, mesmo que olhasses distraída e apenas sorrisses em tolerância leve. O frio veio com a neve e a Deolinda acendeu-me a braseira logo de manhã. É um frio que nunca conheceste e eu te não sei explicar. Límpido, todo em arestas finas, qualquer coisa assim. Aqueço os pés e penso em ti. Mas é tão difícil dizer-te quanto penso nas palavras que escrevo.

No vazio da casa, ouço às vezes a tia Luísa lá para dentro. Ou a tia Joana. São vozes soltas no ar e que no ar se desvanecem. Mas um dia ouvi-te a ti perfeitamente e vim mesmo ao corredor em alvoroço. Disseste o meu nome claro e eu disse-te estou aqui. Mas não disseste mais nada e eu fiquei tenso à espera e quase sufoquei. Mas eras tu, conheço bem a tua voz, poderia reconhecê-la no vozear de uma praça pública. É uma voz breve, com um leve timbre de corda fina de guitarra e uma cor branda de lume. É uma voz serena e de uma longa melancolia que devia vir de muito antes de teres nascido. Quantas vezes a ouço, tento ouvi-la na memória apaziguada do que passou. Mas não sou capaz de ta ouvir nos momentos mais difíceis da vida, quando o que dizias suportava um peso enorme do que não dizias, como na tarde em que a Xana se foi. Ou mesmo quando me deste o aviso seguro da tua morte. Lembro-me é de quando na nossa primeira noite eu te disse que te amava e tu disseste também te amo. Hei-de lembrar-me decerto ainda de quantas outras palavras me disseste. Mas agora quero ouvir apenas essa tua palavra ardente em que toda a vida se me consumiu. E do sim gentil no pátio da Universidade e em que tudo começou. Também te amo. Sim. E é estranho como uma vida inteira se me resuma a uma palavra. Possivelmente por ser a única a dizer tudo o que valeu a pena saber. E se resuma também à tua imagem, no instantâneo do teu passar. E agora que tudo findou, penso que a perfeição do teu destino no meu seria ouvir-te ainda uma vez, de passagem, também te amo. Uma vez ainda. Ainda. Assim eu te escrevo para te demorares um pouco. Talvez voltes a dizer-mo. E eu a ti.

Voltarei a escrever-te? Para voltares a existir no que escrevo em ti. Demora-te hoje ao menos ainda um momento. Para olharmos a neve na montanha, os campos desertos, ouvirmos em nós o silêncio do mundo. Xana disse-me há tempos – qualquer dia dou aí um salto. Mas não deu. Montei um telefone para ir a algum lado sem ir e ela agora aproveita para vir também sem vir. Estás bom? estás fino? é o que importa. E desliga. Escreveu uma vez mas não adiantou mais nada. Um dia dou aí um salto, disse. E eu tenho estado à espera. E que é que ela poderia dizer-me? Os jovens dizem tudo tão cedo, querida, e ficam em silêncio tão cedo. Não é maravilhoso estar ainda contigo? E escrever-te ainda, escrever-te. Talvez. Recriar-te no imaginário a figura gentil que não mais voltarei a ver. Sandra. A tua juventude que mora na eternidade, onde para sempre me ficou. Mesmo quando já envelhecíamos e a filha cresceu e se foi. Porque eu olhava-te e o que via à transparência dos anos acumulados era essa juventude que ficara em ti e era o eterno do teu ser. Aí está agora definitivamente – como poderia eu reconhecer-te no tempo que ainda houve? É-se eterno dentro de nós. Mas a tua eternidade mora também na tua imagem, na frágil harmonia do teu corpo que conheci.

A tarde apaga-se lenta, a Deolinda deve estar a vir aquecer-me o jantar. E eu suspendo a obsessão de te dizer todo o maravilhoso de ti, antes de te imaginar a breve ruga na face e ouvir-te dizer que tolice. Não digas. Se te sentasses aqui à braseira. E se te demorasses comigo um pouco e olhássemos em silêncio a grande noite que desce. Em silêncio. Não te dizer mais nada. E tomar-te apenas a tua mão franzina na minha. E sorrires.

Paulo
in cartas a Sandra, Vergílio Ferreira

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