Se eu quiser

“I’m up all night to get lucky”, dizem os Daft Punk. Porque todos nós precisamos de sorte. Nós, pessoas, às quais intitulam de animais (ir)racionas, que se limitam a viver o dia-a-dia, lamentando-se dos caprichos que ocupam o seu tempo livre, falando deste e daquele, relembrando o passado e ansiando o futuro, “Se Deus quiser”. Mas bem, isso é outro assunto que não vem nada a calhar agora. 
Voltando ao assunto: nós, pessoas, que temos sentimentos. Sentimentos por outras pessoas, tão ou mais estúpidas que nós, por animais (certamente mais inteligentes que nós), por coisas, por músicas, por momentos, por comidas, por tradições, por roupas, por fotografias, por tudo aquilo que nos faz sentir bem e que por vezes deixamos fugir como um canário foge quando vê a porta da gaiola onde está enclausurado há anos aberta. Escolhi o canário porque lembro-me dos canários quando era pequena. Lembro-me de os ter no parapeito da janela, e de eles serem hiperativos. Também me lembro de querer sempre limpar-lhes a casa e de a minha mãe não deixar. O último canário que tive morreu. Os outros também morreram, mas não da mesma forma que o último canário morreu para mim. O último canário quando morreu deixou um vazio no meu coração. O meu dia-a-dia deixou de fazer sentido por alguns tempos sem o último canário. Sim tu, aquele que já fazia parte da minha rotina. Chegar a casa, pousar as tralhas, lanchar, e poder olhar para o lado e ver-te feliz, a saltitar de arame em arame. Adorava quando cantavas. Era sinal de felicidade. E eu gostava de te ver feliz. A tua felicidade transmitia-me felicidade a mim. E quando eu e tu estávamos felizes, então o mundo todo, pelo menos o nosso, estava feliz. Há noite, antes de dormir, ia sempre ver como estavas. Curioso… Estavas sempre igual: embrulhado em ti próprio, como que se protegesses todas as tuas forças durante a noite para depois, quando o sol, de manhã, entrasse pelos vidros cheios de dedadas minhas, acordasses com aquela vontade de me reencontrar que tanto te caracterizava. O teu cantarolar soava-me como um alegre “Bom dia!”, que me fazia realmente acordar. Se calhar, “realmente” não é a palavra certa, porque eu nunca chego a acordar. Mas pelo menos as tuas palavras eram a primeira coisa que conseguia, e agora sim, realmente ouvir. Soavam bem no meu ouvido. Às vezes, faziam cócegas, como quando nos dão um beijo no ouvido, sabes? Aquela sensação estranha que fica aqui a remoer durante uns segundos e que te faz ter vontade de espancar amorosamente o causador de tanto arrepio. Digo amorosamente por razões óbvias. Ou então não. Mas porquê questionar-me? Tenho dúvidas? Devo? É moralmente, eticamente, politicamente, e mais coisas acabadas em “mente” correto? Afinal, o que é que isso interessa? Interessa. E muito. Não a história da moral ou da ética, mas sim a história, e não querendo menosprezar o assunto usando como analogia a história, da consciência tranquila e o estar bem comigo própria. Momento de retrospeção profunda, análise de sentimentos, turbilhão de emoções, brainstorm, finalmente uma conclusão. O último canário já não era o mesmo. O último canário já não cantarolava da mesma forma. A hiperatividade passou-lhe. A forma aconchegada como dormia já não transmitia tranquilidade. As manhãs não eram as mesmas e eu não chegava, num dia inteiro, a ouvir o que quer que fosse. Vinte e quatro horas por dia sempre a mesma monotonia. Um ciclo vicioso que teimava em viciar-se em vícios insaciáveis. Cansada de uma rotina sem sentido e sedenta de qualidade de vida, assim vi o último canário partir. Partiu de um mundo fútil, sujo e obscuro, para um mundo cheio de oportunidades. E partiu na palma da minha mão, como alguém que transporta nas mãos, em concha, aquilo que mais preservou durante alegres e entusiasmantes dias de uma jovem vida. A reação das pessoas, aquelas coisas estranhas e estúpidas, foi surpreendente. Por um lado sentiram pena, e até impressão, por ver o último canário adormecido para sempre nas mãos de quem o fez tão feliz. Por outro lado, sentiram a espécie um déjavu. Eu, senti que apesar de ele partir para outro mundo, continuava a pertencer ao meu, que não era fútil, não era sujo, não era obscuro. Porque no final, o que importa são as recordações, os momentos. Porque no final, podem tirar-nos tudo, menos as coisas boas que fizemos por aqueles que amamos, que protegemos, que veneramos. Aqueles sem os quais não conseguimos viver. E digo viver, porque eu hoje não vivo. Hoje, as recordações passam a tristeza. Os momentos a vazio. E não falo no tempo em que eu acordava com vontade de viver um novo dia, mesmo sem acordar a cem por cento para a vida. Falo no tempo depois disso. Naquele em que as oportunidades surgem, em que a vida dá voltas de cento e oitenta graus, em que nós evoluímos e nos tornamos pessoas diferentes, mas no qual jamais nos esquecemos daquilo que faz de nós genuinamente simples. Ou simplesmente genuínos, como um português de Portugal, que não se limita, felizmente, ao “sinto a tua falta”. Porque se há sítio onde existe a saudade é aqui. Aqui, bem pertinho de mim, bem junto ao meu angustiado coração. Angustiado, mas consciente. E enerva-me tamanha consciência! Pois só esta maldita nos dá uma chapada de realidade e nos faz tirar a venda escura que nos escurece aquilo que está mais que nítido no nosso pensamento. Esse, é outro com quem a minha relação está longe de ser perfeita, mas que, tal como a história de Deus, não interessa para o assunto. Ou será que interessa? Damn, outra vez! Chega de interrogações, chega de dúvidas, chega de inquietações. Chega de esconder aquilo que toda a gente já sabe. Aquilo que me tira noites de sono, que me dá dores de cabeça, que deixa sem fome, que me deixa com vontade de me afastar de tudo aquilo que até hoje me fez ser feliz. Até hoje. Mas porquê só até hoje? Porquê?! E amanhã?… Merda, parece que tenho mesmo profundas saudades dos meus canários. E o último canário? Esse, ontem uma prioridade alcançada, hoje uma prioridade a alcançar, algo que só depende desta mente tresloucada e altamente necessitada de reparação, como os carros que vão ao mecânico trocar uma peça que se partiu. Bem, se calhar do que eu preciso mesmo é que me troquem o coração. E uma valente lufada de ar fresco também era Benvinda. Que é para finalmente poder recuperar tudo aquilo que fui um dia e voltar a ser aquilo do qual me orgulhei desde que me lembro: ser feliz. E isso, é “Se Eu quiser”.


Love, 
Ygritte

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