Hei-de amar-te mais

Cristina,

Agora que os contornos deste amor são públicos - e que me pedem este texto - e tornar público não passa de comunicar com mais antenas, pergunto como nos lerão nesta sociedade do espetáculo que tudo reduz a novelas e exibicionismos descartáveis? Quis dar notícias ao mundo, um discurso meu, interior, o mais fundo e mais alto que fui capaz, sem ambição a regra universal. Os fragmentos do discurso amoroso dizem pouco de um amor, do amor, esse enigma que nunca saberemos dizer porque não é importante reduzi-lo a fórmulas, encerrá-lo, aprisioná-lo. Ouvi já chamarem-lhes, às coisas que te escrevi, um elogio do amor e da loucura, como se amar e ser louco fossem fios inseparáveis da mesma meada, um novelo de emoções e sentimentos possuídos por energias descontroladas, sinapses (arcaicas) em sobressalto, intuições puras nascidas no instante do êxtase que poderão ser instantes de graça e não devaneios confundidos com arte.
Vim aqui falar de amor, do meu amor, da minha ideia de amor e de como o sofrimento é inevitável, de como nenhuma criação se faz sem a dor do esforço. Talvez não saibam mas comecei logo a escrever-te. A primeira vez escrevi sobre ti e logo ali puderam ler da minha fascinação, numa deslocada prática de jornalismo comprometido. Entrevistei-te e dei ao artigo o título suspeito de «Voto em Branco».
A circunstância de jogar fácil com o trocadilho do apelido escondia a minha admiração profunda por teres sido capaz de te entregar à conversa íntima sem qualquer manobra de convencimento de diva no seu pedestal. Logo ali foste a pessoa generosa, franca, humilde como sempre és diante de qualquer pessoa que te procure através dos tempos. Não fomos um caso de amor à primeira vista, um coup de foudre , uma canção do bandido ou da bandida. Por muitas e variadas circunstâncias derramadas neste diário posso achar (e gosto de pensar) que somos um reencontro, que és sempre tu a mesma em todas as vidas, a dos ensinamentos maiores, a do livro dos prazeres e da aprendizagem. Dizes que quando me viste chegar disseste ao teu botão esquerdo, «pronto, lá mandaram mais um estagiário», ainda por cima fraca figura, aloirado, esquálido e com corpulência de faquir. Não fiz pose, não te seduzi, não procurei dar-me ares. Pouco ou nada sabia de ti até ouvir o teu Ulisses que todas as vezes que o escutava me fazia chorar de forma inexplicável, que me punha com pele de galinha e me fazia pensar em outonos em Berlim. Ainda pensei começar a conversa com um «diz-me agora o teu nome» só para ver do efeito poético dessa passagem inspirada do mestre Fausto Bordalo Dias, mas não tínhamos ainda dito que sim. Perguntei-me, disso lembro-me bem, porque me olhavas assim, porque me falavas assim, tu que quase nunca te permites derramar o teu ser para lá do canto e da voz do silêncio. Tu, a tímida, a insegura, a mulher das eternas desculpas por estares onde quer que estejas para além da tua casa, a falares do teu interior com uma cumplicidade desarmante. E eu, a entrar pelos teus olhos potáveis adentro, a renovar o meu espanto a cada frase deslocada de tudo o que fosse matéria publicável. Tu, indiferente à possibilidade de a confissão mais sofrida ser tornada pública, de que tinhas a vida sacudida, e como o sucesso, a glória e o reconhecimento eram grandes ilusões. Apenas te importavas naquele instante em seres tu, como te ocupas seja onde for. A tua maior riqueza nunca serão os stacattos e os vibratos e as maravilhas do teu canto limpo como é limpa a tua vida. Esse tesouro, essa tua roda da fortuna habita nos teus modos de rapariga simples, distraída de tudo o que seja carreira, propaganda, pão e circo, estrelato, sempre à procura do caminho de volta ao camarim ou de preferência à tua casa e aos teus filhos, pois se cantas assim, e tocas assim (a muitos que tocarás) é porque a tua voz é a de uma Mãe que canta.
Trouxe-me aqui, à escrita, e traz-me todos os dias a ti apenas isso, a possibilidade da comunicação perfeita que a «mãe» Clarice disse estar no cordão umbilical. O esbarrar numa frase (num olhar, num trecho musical) como quem esbarra num paredão de felicidade. Deve-se ou não procurar entender o que acontece no amor, uma compreensão inteligível, como o ato de criar o que quer que seja, uma frase, um poema, um livro, uma música, uma coreografia? Vivo nessa procura inglória de casar o pensamento e o sentimento, de encontrar o caminho entre isto, a alegria de estar a escrever para ti e as emoções sempre intensas que me convocas. Escrever é dar tudo o que temos. Penso se por estar a escrever-te porque és quem és - não sendo nós nada mais para além de seres à procura de um entendimento amoroso, um caminho para o espírito e a compreensão - não dirão os brutos e os judas estar aqui apenas um oportunismo. Amei outras mulheres e muito lhes escrevi e levei-o a público noutros registos e ninguém me excomungou. Qual a diferença entre um pintor que retrata as suas musas, um poeta que as canta ou um escritor viajante que fala da sua saudade insuportável por não poder partilhar a sua viagem com aquela que ama? Não há aquele filme do Woody Allen onde toda a gente te diz que te amo? Podia ter embrulhado as muitas páginas escritas nestes anos e deixar-tas na cabeceira ou enfiar-tas nos teus «sarcófagos» para que lesses tudo o que te escrevi e soubesses como te amo, como te admiro, como a minha obsessão é apenas um caso que a ciência e a poesia explicam, do amador que se tornou na coisa amada.

Para mim serás sempre a Cristina, sem o Branco.

Tiago

Almeirim, 4 de Junho, 2013

em Hei-de amar-te mais, Tiago Salazar, Oficina do Livro

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