carta breve ao meu pai


esta carta é para ti que me ensinaste a olhar, a prestar atenção, a querer conhecer, a querer tocar e sentir sem tocar e sentir, a querer o mundo e os mundos para lá dos meus braços agarrados aos teus joelhos. 

não morreste pai, não morreste.  estás vivo e não só nas fotografias e nos meus gestos que te repetem e nos sonhos onde continuamos a ter conversas de melhores amigos. não morreste.

e Leça foi primeiro contigo     Leça

e eu fui primeiro contigo    eu

em pequenos gestos que te repetem

e ainda hoje gosto quando as pessoas que te conheceram me dizem que sou parecido contigo, embora nunca saiba muito bem o que querem dizer com isso.

como gosto de me ver anotar tudo como tu em papéis soltos que nunca hão-de servir para nada e que dificilmente visitaremos porque não passam de isso mesmo papéis soltos que nunca hão-de servir para nada. nos dias felizes ainda visito os teus que vou apanhando e juntando e visitando e visitando sempre como se fosse a primeira vez.

não morreste. tu que me meteste os livros na pele, na pele o vício pelas enciclopédias todas, que em ensinaste a ler deitado de costas a olhar para o céu, porque é isso que um livro é, um céu, mais real mais puro mais nosso. não morreste tu que me deste o Gilé o Limpopo o porto de Nampula mais o Douro, o nosso Douro, com o Tua, o nosso Tua, muito bem escondido.

e gosto sobretudo que me tenhas dado a minha mãe,  que tenhas escolhido para minha mãe a minha mãe.

e continuo muitas vezes agarrado à tua perna enquanto tentas andar. e sei que muitas vezes é a tua perna que me segura, que me ampara, que me ensina a caminhar. e sei que nesses momentos serei sempre criança e irei sempre contigo para todo o lado como quando era criança e que estarás sempre comigo.

e Leça foi primeiro contigo, pai    Leça foi primeiro contigo 

o farol, a marginal, a casa de chá, as rochas da pequena capela onde muitos anos mais tarde me encontravas a namorar e a Petrogal, as horas na praia a imaginar que quando crescesse gostaria de ter o emprego daquele gigante que se dedicava a fabricar ondas, todas as ondas do mundo, a fabricar a música que toca nos dias de maior tempestade.

e o Porto primeiro contigo, a Pesqueira, o Pinhão, a Régua e o Mutaca que me mostrou quantas eternidades uma gargalhada pode ter, Lisboa e o Barata, e a sua caldeirada de marisco que ficava quase tão boa como a do Michel com a diferença deste lamber a colher de pau na televisão, o Silva e o Vieira, Torres Vedras e o Vilas, o Dinis e Campo de Jales de que nunca conheci mais do que a casa do Dinis e onde nunca mais voltei, e o Couto e os verões em Afife e os rebuçados e os gelados da fábrica de Afife, o Couto que também não morreu, pai    e não morrerá nunca.

lembro-me desses grandes amigos muitas vezes e desse maravilhoso hábito antigo de os grandes amigos se trataram pelo sobrenome  e sacana e uma gargalhada, o sacana do Silva, o Neves o sacana locomotiva a ressonar, e o sacana do tio Augusto sempre com as suas histórias, os ataques cardíacos de deixar o seu cigarro e o seu comunismo secular, o sacana do tio Augusto que me visita tantas vezes como tu que estás sempre aqui.

e o futebol primeiro contigo, as Antas, os recortes nos jornais, a dragões, os relatos e o vinho para festejar com o Madjer, o Futre, o Gomes o Geraldão

obrigado por existires, pai. e obrigado por semeares África no meu coração. obrigado por existires e seres tu, pai. e obrigado por me ensinares da importância das lágrimas, até das que não choramos, sobretudo das que não choramos. obrigado também pelas madrugadas no golfo, pelas tardes da malha e da sueca, as tardes a viajar. e obrigado pela cebola o sal e o pão, divindade tríplice, a ovas de bacalhau de que só gostei enquanto comias comigo, pela melhor sopa de cebola do mundo, o melhor abraço do mundo num difícil dia de ressaca. obrigado por tudo isto e sobretudo obrigado por tudo o que não está aqui escrito, mas está aqui.

fazes-me muita falta, pai. fazes muita falta.

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