a cidade está a dizer-se e não há primavera que não se faça ouvir
quanto
pesa um coração? quanto pesam seiscentos gramas de erosões nocturnas espelhos de chuva quilómetros de solidão?
ouve-se,
a minha solidão ouve-se?
escrevo-te
daqui, de um arquipélago sem memória porque só memória, e no fundo não tenho
nada para te dizer: a tua respiração faz
nascer o sol na minha boca, só isto o que tu já sabes o que não preciso de
voltar a escrever
não tenho a certeza de saber ser uma pessoa
triste, não tenho
fica
tudo tão parado por tanto tempo
sobrevivo
à custa de leituras de emergência e de pequenos contentamentos que compro em lojas que vendem coisas de
pessoas falecidas: uma grafia muito antiga às vezes um chapéu apaixonado outras vezes tempestades por entre prateleiras vazias e pulsos muito despidos
e
depois sonho contigo
e amanhã vou voltar a sonhar e não vou conseguir morrer,
quem ama não morre da morte, e amanhã na rue saint-honoré tu vais voltar a
perguntar: não tens mais nada para fotografar? e eu vou sufocar por dentro do
incêndio provocado pelo teu olhar pelos teus tornozelos pelo teu sangue dentes
cheiro pele na minha pele
e continuo
a gostar tanto de te cheirar por dentro
na saint-honoré os teus tornozelos nus os teus
pés parados:não tens mais nada para
fotografar? não quero que cresça mais
erva no meu coração por isso preciso de te fotografar não quero que cresça mais erva no meu coração e não sei fotografar mais nada e tu a sorrir:comprei
estas calças para ti e se é só por isso não precisas de saber fotografar mais
nada e da janela do teu táxi a gritares:é por ti, é por ti que hei-de voltar,
que volto sempre e nesse momento o
lavatório começa a pingar a noite e a sanita a pingar também e o frio que só pára
de pingar contigo na minha camisa vestígios de uma manhã muito branca no teu
seio e não se ouve pingar a noite com os meus lábios a escorregar para os teus
mesmo antes de acordar eu no teu ouvido:a tua aparição é sempre um
acontecimento de azul estrelas constelações muito brilhantes e arrepios e sol e
sol a queimar no céu da boca
e começo a acordar
a cidade está a dizer-se e não há primavera
que não se faça ouvir nesta
cidade que tem um nome que só em sonho se pode pronunciar e pássaros azuis pássaros muito azuis a pintar o céu de todas as cores
e
tu entras por aquela porta, recolhes o meu corpo do chão, juntas todos os
pedaços, até os mais pequenos, até os que não se podem ver, tiras-me o livro da
mão, acabas com esta chuva invisível, fechas a janela, despes-te, deitas-te,
abraças-me, beijas-me atrás da orelha e dizes baixinho: não precisas de me
fotografar, somos namorados, volta a dormir eu vigio o teu sono.
Muito bom! mais um texto que merece ser lido e partilhado :)
ResponderExcluirbjo*
A pedido dum narcisista desesperado, deixo aqui o seguinte comentário:
ResponderExcluirContinuas a escrever para além daquilo que se pode ler.
Continuas a escrever para além daquilo que se pode ter.
Continuas a escrever tudo o que se pode querer.
E revejo a minha vida toda numa frase que escreves-te: «não tenho a certeza de saber ser uma pessoa triste, não tenho». Não tenho mesmo! Como é possível? E são as palavras que escreves e que te laçam para uma qualquer realidade paralela porra!
Assino por baixo o que diz a tua Sis,já sabes! ;)
Beijos!!
revejo-me apenas e tão-só apenas na palavra desesperado...quem escreve está sempre desesperado!;)))de resto, vocês estragam-me com mimos
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