Retrato de M


– eu escrevo poemas que se podem fumar

– não és o que eu procuro

– sou o alto mar

e vejo o tempo começar na sombra de uma janela que se abre na fotografia em que estás tu o Borges o Cortázar  Rua Florida Richmond ao fundo e em que te estou a dizer sou o alto mar e

– posso não ser o que tu procuras

– eu nunca soube chorar, por isso espero a chuva

– a chuva não é deste planeta, não me deves esperar

 que não regresso ao quarto feito de regressos a que regresso sempre, sexto andar,  livros com poemas a fazer de cabeceira, poemas no chão a fazer de chão e a anunciar a chuva que  sempre se demora por vir de longe, e nós bem longe também da Rua Florida onde nunca chovia e se chovia não era chuva e se era chuva não nos podia tocar

– tu existes ainda que eu precise de te inventar

– tu já me inventaste agora não existo

e não durmo embora continue a comer e não durmo e sobretudo bebo até as noites mais inteiras e vejo-te mesmo quando não te vejo e bebo para que me fales ao ouvido coisas que eu não consigo perceber e não foste a única porque houve outras mas foste a única que ainda te vejo até em certas palavras que são partes do teu corpo que eu não consigo tirar de mim

– estou aqui

e estás aqui mas já não sei pronunciar o teu nome
só a primeira inicial que se repete uns passos mais à frente como se a terra fosse toda mar e o mar fosse todo eu

e sinto frio e espero que o frio se esqueça de mim e abro de novo a janela da fotografia que não me reconhece e toco a chuva que veio de longe e não é deste planeta com a ponta dos dedos desço por ela e abro totalmente esta janela que não me reconhece e a chuva traz-me à cama onde ainda dormes entre os meus papéis confusos e não isto não são lágrimas embora o sal

– nos teus olhos vejo coisas que só existem nos teus olhos

– demoraste ou quiseste fazer-me esperar

– eu não sou quem se deva esperar

– provavelmente vou esperar-te até depois da morte

– a morte é só um outro tempo, um outro modo de dizer as coisas

e eu não sou quem se deva esperar, que me acabo antes à porta de um prostíbulo, Paris ou Buenos Aires, como um poeta deve acabar

– nunca te disse mas acho que não te posso deixar, detesto demasiado a tua poesia

– tu detestas toda a poesia

– na verdade não detesto toda a poesia, só tenho medo

– na verdade eu não faço bem poesia, só quando te escrevo ou te ponho nua

– já não fumo, escreve-me poemas que me possam matar

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