carta a v

de que são feitos os teus lábios?

podias ter salvado coimbra. eu podia até ter chegado a gostar de coimbra: o mondego a ser o meu rio, as tristes capas a minha pele, a estação nova primavera e outono de todos os meus dias, a sé velha, os arcos do jardim, a porta de almedina mais os cafés da baixa

podias ter salvado coimbra e todas as pessoas que conheci. poderias ter salvado coimbra e eu não esqueceria nem pedro e inês o número do eléctrico o primeiro dia das repúblicas.

podias estar a acordar agora e podias dançar aos saltos na cama, o gato a um canto a olhar eu a um canto a olhar e ver coisas que só eu consigo ver, eu e o gato.

não sei se sobreviveria a um instante do teu corpo, não sei se sobreviveria a esse murmúrio de flor murmúrio de tempo a essa viagem para sul, não sei se sobreviveria aos teus lábios perfeitos.

ainda me lembro da primeira vez que te vi, as coisas todas a fazerem-se pequeninas: as pedras da calçada o teatro ao fundo a cidade de ruas e pedras de calçada e escadas de namorados lentissimamente a desaparecer.

agora vejo-te muitas vezes e chegas-me cada vez mais inteira,

e eu não sei se sobreviveria à vertigem do teu corpo, provavelmente morreria na troca repetido.

agora apareces-me muitas vezes,

e eu escrevo-te muitas vezes na pele a maresia os perfumes da noite um crepúsculo antigo as constelações todas  e tu falas de ti das tuas mãos do silêncio da casa do vento que entra pela janela seguindo os passos da lua.

o teu sorriso faz nascer coisas bonitas flores raras primeiros dias. o teu sorriso.

não sei se nos encontraremos mais vezes, para além das últimas frases desta carta,

não sei se nos encontraremos mais vezes,

mas sinto que estarei sempre aqui, na fronteira da tua anatomia

sempre aqui, onde o mar se põe.

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