morreste-me
As paredes voltaram a separar o inverno nocturno, permanente da casa e o
ciclo alternado dos dias e do mundo, alheio a nós, para lá de nós. Comigo, a
casa estava mais vazia. O frio entrava e, dentro de mim, solidificava. As
várias sombras da sombra de mim, imóveis, passeavam-se de corpo para corpo,
porque todos eles, todos meus, eram igualmente negros e frios. E abri a janela.
Muito longe do luto do meu sentir, do meu ser, ser mesmo, o sol-pôr a
estender-se na aurora breve solene da nossa casa fechada, pai. E pensei não
poderiam os homens morrer como morrem os dias? assim, com pássaros a cantar sem
sobressaltos e a claridade líquida vítrea em tudo e o fresco suave fresco, a
brisa leve a tremer as folhas pequenas das árvores, o mundo inerte ou a mover-se
calmo e o silêncio a crescer natural natural, o silêncio esperado, finalmente
justo, finalmente digno. Pai. A tarde dissolve-se sobre a terra, sobre a nossa
casa. O céu desfia um sopro quieto nos rostos. Acende-se a lua. Translúcida,
adormece um sono cálido nos olhares. Anoitece devagar. Dizia nunca esquecerei,
e lembro-me. Anoitecia devagar e, a esta hora, nesta altura do ano, desenrolavas
a mangueira com todos os preceitos e, seguindo regras certas, regavas as árvores
e as flores do quintal; e tudo isso me ensinavas, tudo isso me explicavas. Anda
cá ver, rapaz. E mostravas-me. Pai. Deixaste-te ficar em tudo. Sobrepostos na
mágoa indiferente deste mundo que finge continuar, os teus movimentos, o
eclipse dos teus gestos. E tudo isto é agora pouco para te conter. Agora, és o
rio e as margens e a nascente; és o dia, e a tarde dentro do dia, e o sol
dentro da tarde; és o mundo todo por seres a sua pele. Pai. Nunca envelheceste,
e eu queria ver-te velho, velhinho aqui no nosso quintal, a regar as árvores, a
regar as flores. Sinto tanta falta das tuas palavras. Orienta-te, rapaz. Sim.
Eu oriento-me, pai. E fico. Estou. O entardecer, em vagas de luz, espraia-se na
terra que te acolheu e conserva. Chora chove brilho alvura sobre mim. E oiço o
eco da tua voz, da tua voz que nunca mais poderei ouvir. A tua voz calada para
sempre. E, como se adormecesses, vejo-te fechar as pálpebras sobre os olhos que
nunca mais abrirás. Os teus olhos fechados para sempre. E, de uma vez, deixas
de respirar. Para sempre. Para nunca mais. Pai. Tudo o que te sobreviveu me
agride. Pai. Nunca esquecerei.
José Luís Peixoto
in morreste-me
quando não sei o que fazer às saudades da voz, às vezes até do eco da voz, daqueles que perdi volto sempre a este livro
ResponderExcluirposso dar uma sugestão?qdo não souberes o que fazer às saudades da voz...escreve (uma carta a paris)!;))))beijinho
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