O que resta de azul à minha volta envelheceu comigo
Estas duas cartas foram escritas em cidades diferentes, mais ou menos ao mesmo tempo, por duas pessoas que se separaram e foram enviadas no mesmo dia. Possivelmente cruzaram-se. Não se sabe se chegaram a ser lidas.
chegaste depressa e
quase não chegaste porque quase não te vi chegar
perguntei-te: sabes
do verão?
e tu entraste em mim
a ponta dos teus
dedos pequenos gomos os teus dedos todos a derreterem o metal da minha boca da minha
pele o metal
e passaste a ser o
meu calendário a infância dos meus dias e eu dias inteiros no teu corpo a desenhar o tempo pequenos barcos e histórias
de saliva muito longe ainda do frio a
gastar as paredes da humidade na boca da porta escancarada incapaz de lembrar os teus passos e a minha ausência na
tua despedida
há algo de muito
errado contigo
devias saber que
para um poeta nada é de passagem: a poesia não ensina nunca a matar e depois de
ti só palavras vazias de sangue e calor e verbos bombardeados de cinza
o inverno é uma longa
noite de corvos e vozes adormecidas chuva ar nenhum só resíduos da tua
respiração antiga e
o inverno dói
e os teus pássaros
já não falam comigo, sabes? já não me contam de ti e das tuas coisas e eu
descalço a tocar o mar já não posso: foi um pássaro que me contou ao ouvido
a distância aflige
os pássaros, sempre afligiu, e pelo caminho é normal eles perderem o coração o sentido
eu perdi o meu
e não sou nenhum
pássaro e não sei voar e a distância sempre me afligiu também que isso de que engrandece os amores maiores é uma persiana que planta mentiras à volta do mar e eu já
não te posso tocar que os grandes amores sobrevivem de coisas muito pequeninas
coisinhas insuportáveis do dia-a-dia coisinhas que a distância não conhece coisinhas
e na distância perdi
também as estações, que não voltam as tuas estações, não voltam e não volta a primavera e não volta lisboa
e o tejo e as mãos dadas nas fotografias agora é esta cidade de casas a arder de
casas e pessoas e luzes muito nocturnas
e o teu corpo era
onde me apetecia morar, o teu corpo
e ontem beijei-te e
chamei o teu nome e gostei de te acordar
hoje não saberia como te chamar, obrigaste-me
a chamar-te outro nome um nome que não era o teu, obrigaste-me a chamar-te outro
nome como se o amor não fosse nome suficiente, como se as cicatrizes e os
domingos pudessem passar na transparência dos copos de whisky dos poemas de
Bukowski de todos os outros corpos que existem para além do teu e tenho para
gastar
o meu mundo inteiro
eram as tuas mãos,
e há algo de muito
errado contigo para não o teres percebido
por isso neste
momento de arrastada lucidez com a arma ao alcance da mente a arrábida a d.
luís ou os clérigos na vertigem do pôr-do-sol final do fumo do último cigarro e nenhum medo digo: o meu mundo inteiro
eram as tuas mãos
e amanhã não será
possível abandonar o silêncio
amanhã morro
Carlos Soares
Não, que não tenho
carne nem sangue nem boca que não te planeiem amar a todos os minutos. E sou o
lugar mais desolado do mundo quando não te tenho, e só isso é que é errado.
mas preciso desta
distância
antes que convide
alguém para ter um acidente comigo.
E podíamos dar as
mãos! – Se não tivesse que ser sempre sem ti…
Das manhãs em que
ainda vivo abro a cortina da luz com que me veste o Tejo: carícia que me lembra
a tua pele morna, e o teu nome, luminoso culto.
Para quê o Verão,
matéria negra que consome os dias que me restam sem ti – para quê Tu na minha
vida na minha cabeça se tenho que ser sem ti, se sempre me queres sem ti e sem
ti nunca houve
e inútil me conservo
até voltar a ser contigo.
E sempre que voltam
as estações estamos muito mais velhos nas fotografias e se sonho contigo em
câmara lenta é para que não me fujas
Apetecias-me hoje e
amanhã é hoje e ontem foi hoje! Desejo-te em todas as coisas!
E sem fim, quero ser
contigo. Se ainda quisesses ser comigo, há um sítio…
Se me pedisses
baixinho,
podia ser que to
dissesse
podia ser que
existisses lá comigo.
E petiscavas o meu
pescoço
E gastavas-me os
lábios
E eu amava-te em
todos os lugares do mundo! O meu coração está onde estás e até o meu coração
ser pedra és tu.
Não abras a porta
que dá para o jardim de glicínias se não pretenderes voltar para mim. Não quero
mais noites sem rosto!
A minha alma tem
ruas novas, se quiseres descobri-las… Sou tua, sem mais explicações, todos os
nomes são teus.
E o meu olhar sobe à
tua procura com a brisa que tantas vezes nos levou ao Atlântico e tem medo que
tropeces na clandestinidade do caminho que nos uniu, e espera que não haja
distância que não te faça regressar, só nunca ficas mais do que um segundo.
O que resta de azul
à minha volta envelheceu comigo
Se sussurrar nomes
vazios é chamar-te
não é conhecer-te,
ainda
que só existo
através do nome que te dei, e o teu nome, meu único endereço
Ao amor, inútil me
conservo, mas pressinto-te na ponta dos meus dedos: vens? Regressa, como o sol
que me entra no quarto sem pedir licença.
Ou não. E devolve-me
ao menos à luz desta cidade
Maria Supertramp
no comments (0 comentários) ou é caso para dizer que esta carta está "sem" comentários... ;)
ResponderExcluiràs vezes o silêncio diz tudo...acho que é este o caso!
ResponderExcluireu juro que qualquer dia dou-vos um estalo, aos dois!! vocês estão na profissão errada! isolem-se, escrevam, ofereçam ao mundo todas as palavras que habitam em vocês!!
ResponderExcluiradorei os dois ;)
Mary, tu andas um bocadinho violenta demais, não?! :))))
ResponderExcluirPobres pessoas... Deixa-os ter as suas profissões em paz! E deixa que a escrita seja esse complemento vitamínico requintado das vidas deles. Nós agradecemos, certo! ;)
Vais deixar de ir às aulas da Estela, sim! ;)))
não é má ideia...Baikal Lake ou Transiberiano,tenho que falar com a Supertramp!
ResponderExcluir